O matemático em questão, um sujeito metódico até a medula óssea, chamado Arquimedes Aguiar, uma homenagem irônica a um gênio que provavelmente não perderia tempo com fantasmas; enfrentava o luto pela perda de sua amada mãe, Dona Hipotenusa Silva.
Seu ritual diário era quase um axioma: às 16h47 em ponto, depositava um buquê de cravos brancos, as flores preferidas dela, cuja simetria ele apreciava, sobre sua lápide no Cemitério da Saudade Eterna.
A rotina sofreu uma perturbação estatística quando uma figura translúcida começou a surgir entre os ciprestes.
Na primeira vez, Arquimedes atribuiu a visão a uma fadiga visual induzida pela leitura excessiva de artigos sobre geometria não euclidiana. Na segunda, cogitou uma alucinação causada pelo sanduíche de atum duvidoso do almoço, que talvez tivesse que ser adquirido junto com uma guia de internação.
Na terceira, porém, a aparição era inegável: um espectro esguio, vestindo o que parecia ser um paletó antiquado coberto de poeira cósmica, pairava perto do jazigo da família Albuquerque.
A mente analítica de Arquimedes entrou em conflito com o inexplicável. Fantasmas violavam todas as leis da física conhecidas! No entanto, a persistência da aparição o levou a uma nova obsessão. As visitas à Dona Hipotenusa se tornaram uma desculpa para a caçada espectral.
Ele tentou abordagens lógicas: cronometrar os horários de aparecimento, analisar os padrões de movimento (que eram basicamente flutuações erráticas) e até instalar, discretamente, câmeras de segurança com visão noturna (que misteriosamente paravam de gravar quando o fantasma surgia).
Finalmente, após semanas de perseguição silenciosa e frustrante, Arquimedes descobriu o ponto de desaparecimento do espectro: um túmulo antigo, quase escondido sob a hera. A lápide, corroída pelo tempo, revelava a inscrição: "Professor Isaac Pitágoras da Luz - Mestre dos Números Cósmicos - 1775-1925". Cento e cinquenta anos! A matemática desse sujeito devia ser tão avançada que o tempo não o afetava, pensou Arquimedes com uma ponta de sarcasmo.
Os cravos brancos de Dona Hipotenusa murchavam solitários enquanto Arquimedes passava horas decifrando as equações rabiscadas na lápide do Professor Isaac, tentando encontrar alguma pista para a sua existência espectral.
Uma noite, o próprio Professor Isaac resolveu encurtar a distância entre os planos e visitou Arquimedes em seus sonhos.
"Meu caro colega," a voz do fantasma soava como o ranger de uma pena de ganso em pergaminho antigo, "precisamos da sua expertise no Reino dos Matemáticos Desencarnados. Nossa Metrópole dos Fractais está à beira do colapso estrutural. Uma falha na topologia do Espaço-Tempo Hiperbólico ameaça desintegrar toda a nossa existência pós-vida."
Arquimedes, sonolento e cético, tentou argumentar sobre a improbabilidade de cidades dimensionais habitadas por matemáticos mortos. Mas o Professor Isaac era persuasivo, pintando um quadro de um paraíso onde teoremas eram danças cósmicas e a resolução de equações diferenciais era a forma mais elevada de prazer.
"Precisamos atravessar a Linha da Vida," explicou o fantasma, sua forma onírica tremeluzindo, "um portal que se esconde numa gruta interdimensional aqui perto. Sua mente brilhante é a chave para formular a equação de transição. Depois, retornaremos ao nosso Éden numérico."
Arquimedes, apesar de todas as suas reservas racionais, sentiu uma ponta de curiosidade científica. A ideia de desvendar os segredos de um universo matemático pós-morte era tentadora demais para um estudioso da lógica. Ele passou dias em sua biblioteca, consultando tratados de física quântica e geometria multidimensional, tentando conciliar a matemática terrena com as alegações fantasmagóricas.
Finalmente, munido de uma lousa portátil e um giz que parecia brilhar levemente, Arquimedes seguiu as instruções do Professor Isaac até uma gruta sombria nos arredores de uma cidade histórica de Minas Gerais, que fedia levemente a enxofre e a equações mal resolvidas. Lá, uma assembleia de espectros matemáticos o aguardava. Suas formas opalescentes agitadas com a ansiedade de quem espera o resultado de uma prova crucial.
Com solenidade, Arquimedes escreveu sua fórmula na parede da gruta, uma complexa combinação de integrais triplas e séries infinitas. Um brilho azulado emanou da equação, seguido por um som que lembrava o de incontáveis ábacos sendo agitados simultaneamente. Um portal cintilante se abriu no fundo da gruta, revelando vislumbres de formas geométricas impossíveis e cores que desafiavam a percepção humana.
Os fantasmas matemáticos soltaram exclamações espectrais de alegria e começaram a atravessar o portal. O Professor Isaac foi o último, lançando um olhar de gratidão (ou talvez de escárnio?) para Arquimedes. "Nos encontraremos no Paraíso dos Logaritmos, meu caro!"
Arquimedes esperou, observando o portal se fechar lentamente. Nenhum convite para o tal paraíso chegou. Dias se transformaram em semanas, e nenhuma notícia da Metrópole dos Fractais alcançou o plano terrestre. Arquimedes começou a suspeitar que o Professor Isaac era tão confiável quanto uma demonstração matemática com um erro de sintaxe na terceira linha.
De fato, nada de bom aconteceu na tal cidade espiritual. A fórmula de Arquimedes, embora elegante em sua concepção terrena, causou um efeito colateral inesperado no tecido do Espaço-Tempo Hiperbólico. Em vez de estabilizar a estrutura, ela a fragmentou ainda mais. Os matemáticos desencarnados se viram dispersos em incontáveis subespaços dimensionais, perdidos em um labirinto de teoremas incompletos e axiomas contraditórios.
Arquimedes, sentindo-se um tanto tolo e ligeiramente culpado pelo caos interdimensional, recolheu-se à sua rotina. As visitas à Dona Hipotenusa voltaram a ser sagradas, com cravos brancos frescos adornando sua lápide. Ele evitou o cemitério à noite e descartou seus cadernos de anotações sobre matemática espectral. A experiência o deixou com uma aversão profunda a qualquer coisa que envolvesse fantasmas, dimensões paralelas e, principalmente, matemáticos pós-morte com problemas estruturais. Ele aprendeu que, às vezes, a lógica mais implacável não era páreo para a ilógica do além-túmulo. E, secretamente, ele temia que, em algum universo paralelo, Dona Hipotenusa estivesse tendo que lidar com um vizinho fantasma que insistia em discutir a prova da inexistência de Deus usando diagramas de Venn feitos de ectoplasma.
Muito obrigada por sua leitura!
As trilhas sonoras, também as crio.