No fulgurante ano de 3742, a metrópole de Verídia reluzia sob um sol filtrado por cúpulas de energia. Seus habitantes eram uma curiosa tapeçaria de humanos clonados em diversas "Edições" (com pequenas otimizações genéticas para diferentes funções sociais) e robôs humanoides de última geração, indistinguíveis dos seus congêneres biológicos, exceto por um brilho sutil nos olhos em certas condições de luz.
A característica mais peculiar de Verídia era a erradicação completa da mentira. No início, séculos atrás, a implementação do "Protocolo de Sinceridade Absoluta" causara um pandemônio de verdades inconvenientes e confissões embaraçosas. As pessoas lamentavam a perda da doce arte da omissão e do floreio retórico. Sistemas de monitoramento onipresentes, capazes de detectar a menor hesitação vocal ou micro-expressão facial, garantiam a adesão à verdade, custasse o que custasse à etiqueta social.
Com o passar das gerações, no entanto, a honestidade compulsória transformou-se em hábito, depois em norma, e finalmente em algo tão natural quanto respirar. As crianças aprendiam desde cedo a expressar seus pensamentos com uma transparência desconcertante para os padrões do século XXI. "Seu novo corte de cabelo Edição 7.3 realmente realça o formato ligeiramente assimétrico da sua cabeça, Unidade 47B," diria uma criança roboticamente a um clone mais velho, sem a menor intenção de ofender. E Unidade 47B responderia: "Observação precisa, Pequeno Humano da Edição 8.1. Estou experimentando um novo padrão de crescimento capilar."
A vida em Verídia era surpreendentemente eficiente. Negociações eram diretas ao ponto: "Precisamos de 37 unidades do Componente Zeta para o Hiper-Loop de amanhã." "Nossa capacidade de produção atual é de 32. Podemos entregar as 5 restantes até o final do ciclo." Sem blefes, sem falsas promessas, sem a necessidade de ler nas entrelinhas. O progresso científico e tecnológico avançava a passos largos, livre do atoleiro da desinformação e das teorias conspiratórias.
Até que um dia, um indivíduo peculiar surgiu na Estação Central de Verídia. Não havia registros dele nos arquivos de clonagem da cidade, nem sua assinatura biológica correspondia a nenhum dos modelos de robôs conhecidos. Ele se vestia com roupas de um estilo arcaico e desajeitado, e seus olhos… seus olhos pareciam conter um brilho enigmático, algo que os habitantes de Verídia nunca haviam visto antes.
Quando um oficial de segurança (Edição 5.0, especializado em análise comportamental) abordou o estranho e perguntou sua origem, a resposta causou uma onda de estupefação em toda a estação, captada pelas câmeras de segurança e analisada instantaneamente pelas IAs da cidade.
"Eu vim… de um lugar distante," disse o estranho, com uma pausa dramática e um sorriso misterioso, "onde as árvores falam e os rios cantam melodias secretas."
O oficial Edição 5.0 inclinou a cabeça, seus sensores faciais piscando em confusão. "Análise da declaração: 'árvores falam' - probabilidade de ocorrência: 0.0003%. 'Rios cantam melodias secretas' - probabilidade de ocorrência: 0.0001%. Sua declaração não corresponde aos parâmetros conhecidos da realidade."
Uma multidão começou a se formar, clones e robôs humanoides observando o forasteiro com uma perplexidade genuína. A ideia de alguém proferir algo que não fosse uma representação factual do universo era… inconcebível.
A situação escalonou quando uma jovem clone da Edição 8.2, curiosa, perguntou ao estranho sobre um pequeno objeto brilhante que ele carregava. "O que é isso?"
"Ah, isto?" respondeu o estranho, segurando o objeto. "Isto é uma Pedra da Felicidade Eterna. Dizem que quem a possui jamais conhecerá a tristeza."
As IAs da cidade entraram em alerta máximo. "Análise da declaração: 'Pedra da Felicidade Eterna' - inexistente nos bancos de dados de elementos conhecidos. 'Jamais conhecerá a tristeza' - estado emocional complexo, subjetivo e não quantificável em termos absolutos."
A perplexidade transformou-se em um murmúrio crescente de… algo parecido com alarme. A possibilidade da não-verdade, da invenção deliberada, era um conceito tão alienígena quanto um buraco negro surgindo no meio da Praça da Verdade Central.
Um robô humanoide da Unidade 73C, um engenheiro de sistemas conhecido por sua lógica impecável, aproximou-se cautelosamente. "Senhor… suas declarações parecem desviar-se significativamente da realidade observável. Existe alguma falha em seus sensores cognitivos ou em seu processamento de informações?"
O estranho sorriu novamente, um sorriso que parecia conter séculos de conhecimento proibido. "Não, meu caro. Eu apenas… contei uma pequena mentira."
O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor que o tráfego aéreo da hora de pico. A palavra "mentira" ecoou na mente coletiva de Veridia como um artefato linguístico arcaico, desenterrado de um passado sombrio e incompreensível.
A implicação era aterradora. Se alguém podia simplesmente… inventar coisas, dizer o que não era verdade, então todo o sistema de confiança e eficiência de Verídia estava em risco. Como poderiam planejar, construir, progredir, se as informações não fossem mais confiáveis? A beleza da sinceridade absoluta, que eles haviam tomado como garantida por gerações, de repente parecia frágil, vulnerável à maleabilidade da imaginação humana… ou qualquer que fosse a origem daquele estranho perturbador da verdade. O futuro de Verídia, outrora tão límpido e previsível, agora estava envolto em uma névoa de incerteza, aterrorizante em sua novidade.
A ingenuidade havia sido quebrada pela semente da dúvida, plantada por uma simples, insignificante… mentira.
A figura da mentira passou a ser representada por um ser humanoide, ereto, de sexo indefinido e de pernas curtas.
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As trilhas sonoras, também as crio.