O Purificador e as Ressacas Espirituais de Dona Zilda
No ano de 2147, livrar-se dos "miasmas" da alma e das dores do corpo era tão simples quanto uma visita ao Purificador Quântico mais próximo. Dona Zilda, uma senhora de seus setenta e poucos anos ciberneticamente aprimorados, era uma frequentadora assídua da unidade do bairro. Afinal, depois de uma vida agitada vendendo acarajé voador e criando três netos hiperativos, sua "aura" e suas articulações acumulavam um bocado de "resíduos".
O Purificador Quântico Modelo Luxo 5000 era uma maravilha da engenharia psiônica. Parecia uma daquelas cabines de bronzeamento turbo, só que em vez de raios UV, emitia um espectro de ondas de radiação harmonizadas capazes de identificar e extrair as energias negativas, os bloqueios emocionais, as dores crônicas e até mesmo aquela preguiça matinal persistente.
Dona Zilda entrava na máquina com um suspiro cansado e saía vinte minutos depois se sentindo como um filhote de andorinha espacial. Aquele peso no peito por ter discutido com o vizinho robô sobre o volume da música? Vaporizado! Aquela dorzinha no joelho por ter exagerado na resenha flutuante da véspera? Desintegrada!
O "lixo" extraído, uma gosma energética vagamente esverdeada, seguia por um tubo pneumático até um incinerador quântico, onde era reduzido a partículas subatômicas inofensivas. Pelo menos, era o que dizia a propaganda holográfica.
O problema é que, como Dona Zilda bem sabia por experiência própria, o universo tinha um senso de humor peculiar e uma capacidade irritante de reciclar e se reciclar. Aqueles miasmas, aquelas energias densas, pareciam ter uma estranha teimosia em retornar.
Bastava uma semana de convívio com a neta adolescente e seus dramas holográficos, ou uma visita ao mercado municipal com seus vendedores de peixe biônico mal-humorados, para Dona Zilda sentir o retorno daquela irritabilidadezinha familiar e daquela dorzinha incômoda na lombar.
"É como varrer a casa com a janela aberta!", resmungava ela para o atendente holográfico do Purificador, um jovem de cabelos coloridos que parecia mais interessado em seu feed de realidade virtual do que nos problemas existenciais da clientela.
Um dia, enquanto esperava sua vez, Dona Zilda ouviu dois senhores de idade conversando sobre o assunto.
"Dizem que essas energias se refazem no ambiente, né, Seu Jairo?", comentou um deles, ajeitando seus óculos com lentes multifocais cibernéticas.
"É verdade, Seu Agnaldo. A gente entra aqui, fica zerinho, mas aí volta pra casa, liga a televisão com aqueles programas sensacionalistas holográficos e pronto! Lá vem a baixa vibração de novo."
Foi então que a lâmpada (literalmente, uma pequena esfera de plasma flutuante) acendeu na mente de Dona Zilda. A solução não estava em se purificar constantemente, mas em purificar o ambiente!
Na semana seguinte, Dona Zilda não foi ao Purificador Quântico. Em vez disso, investiu suas economias em um pequeno "Neutralizador de Campo Energético Pessoal". Parecia um elegante broche de lapela com um minúsculo emissor de ondas harmonizadoras. A princípio, seus vizinhos acharam que ela estava entrando para alguma seita new age tecnológica.
Mas os resultados foram surpreendentes. A irritabilidade da neta parecia se dissipar quando Dona Zilda estava por perto. As discussões com o vizinho robô se tornaram mais amenas. Até mesmo o vendedor de peixe biônico do mercado parecia menos propenso a reclamar do preço do plâncton premium.
A notícia se espalhou pelo bairro. As pessoas começaram a adquirir seus próprios neutralizadores, inicialmente com ceticismo, depois com crescente entusiasmo. A demanda foi tanta que logo surgiram modelos residenciais, capazes de criar verdadeiros "oásis de paz energética" dentro das casas.
As visitas ao Purificador Quântico diminuíram drasticamente. As máquinas, antes sempre ocupadas, agora tinham filas bem menores. O atendente holográfico finalmente teve tempo para zerar seu backlog de séries antigas.
Dona Zilda, sentada em sua varanda flutuante, apreciando a brisa suave e o canto melodioso dos pássaros biônicos, sorriu satisfeita. Ela havia descoberto que, às vezes, para limpar a alma, era preciso começar limpando a sala de estar. E que, mesmo no futuro da alta tecnologia, um pouco de bom senso e uma pitada de iniciativa ainda eram os melhores "passes" de todos.
Muito obrigada por sua leitura!
As trilhas sonoras, também as crio.