DÁDIVA
DÁDIVA
Era um fodidão desde a concepção: a mãe uma drogada, que Deus a tenha, o fez atrás de um poste, com um desconhecido, que a pagou com um par de notas do menor valor do mercado, na esquina de uma rua erma e escura, em alta madrugada de lua cheia. Para quê? Cheirar pó. Vendeu-se para cheirar pó e sete meses após o episódio nasceu o rebento e neste evento, infelizmente a jovem e linda mulher faleceu, aos dezessete anos, pois estava muito fraca e debilitada pelo vício. O pequeno guerreiro amargou uns tempos na incubadora de um hospital público e, após ter escapado de uma infecção hospitalar, foi adotado pela enfermeira que auxiliou seu parto, pois ninguém de sua família apareceu para o reclamar. Ainda bem, foi criado com todo o amor do mundo e seus parentes consangüíneos eram muito problemáticos. Um bando de gente mesquinha, fracassada, invejosa e burra.
Bem, o menino era amoroso, mas muito fraco nos estudos. Por mais que se esforçasse, suas notas eram sempre muito baixas, talvez conseqüência das drogas consumidas durante a sua gestação. Era um bobão, lento e desengonçado, seu corpo era todo desproporcional: braços longos, pescoço curto, cabeça, nariz e orelhas enormes, olhos miúdos, boca e mãos pequenas, pernas finas, dedos e pés grandes, barrigudo, cabelos pixains. Os colegas roubavam seus brinquedos, chamavam-no de burro, batiam nele, não fazia amizades, as meninas riam dele e os professores diziam que jamais iria ser alguém na vida. Foi-se arrastando na escola até completar o Ensino Fundamental. Seus pais, vendo suas dificuldades até nas mais simples operações fundamentais, deram-no um carrinho de pipoca e providenciaram uma calculadora simples para os problemas matemáticos, mas as pessoas pediam fiado e não pagavam.
Um belo dia, não se sabe o porquê, foi confundido com um delinqüente assassino e viciado, e foi levado para uma Instituição, pois era de menor idade. Depois deste episódio todos voltaram as costas para ele dizendo que herdara o sangue ruim de sua mãe e que desde pequeno sempre fora um problema, um estorvo. Mergulhou em grande tristeza e isolamento no reformatório. Numa tarde, quase foi estuprado por um grupo de cinco adolescentes, deitaram-no, imobilizando-o, quando apareceu um homem moreno claro, atlético, cerca de um metro e noventa e três centímetros de altura, aparentando quarenta anos gritando:
- Nunca mais toquem nesse garoto!
Os meninos se dispersaram apavorados. O rapaz levantou-se tonto, olhando para baixo, limpando a sujeira das roupas largas e claras, e no momento em que foi agradecer, o desconhecido havia sumido. Ainda correu para ver se o encontrava, olhando em todos os cantos possíveis do estabelecimento, sem sucesso.
Depois de um mês notou que estava ficando diferente: mais bonito, até seus cabelos alisaram, sofrendo uma metamorfose gradual ao longo de dois anos. Virou um devorador dos livros da biblioteca. Sua capacidade intelectual foi aumentando, ficou mais ágil e mais esperto e em vez do menino calado dominado por um complexo de inferioridade, nasceu em seu lugar um simpático e sedutor arrebatador de corações.
Por bom comportamento, foi mandado de volta para casa nas vésperas de completar dezoito anos. Sorridente, arrumou-se para encontrar os seus. Chegando à residência, tocou a campainha, gritou, bateu palmas e constatou, depois de quinze minutos, que não havia ninguém lá. Esperou um dia inteiro nas ruas, mais um, mais outro, um mês, e viu homens colocarem uma placa de venda em frente ao imóvel. Anotou o telefone e o endereço da imobiliária para ter acesso à família. Procurou um telefone público e usou os últimos créditos para descobrir que haviam se mudado para outro Estado bem distante. Então deduziu que não queriam mais contato com ele. Sentou-se na sarjeta, apoiando a cabeça nos joelhos, abraçando as pernas e nesta posição permaneceu até o anoitecer.
- Levante-se daí rapaz! - Aquela voz não era estranha. Levantou o olhar e contra a luz do poste pode ver o vulto de um homem alto lhe estendendo a mão. De pé, contemplou sua bela estampa: olhos negros, cabelos lisos da mesma cor, pele clara, vestindo um terno de linho branco, gravata, chapéu panamá e sapato de pelica da mesma cor, camisa social vermelha. Reconheceu ser o mesmo que o salvou. - Disse:
- Vim te assistir! A partir de hoje sua sorte mudará. Olha como está bonito! Fui eu quem trouxe beleza e inteligência a você, desde quando nos encontramos há dois anos. Para que nunca mais sofresse humilhações. Por isso você deve acreditar em mim. Não espero nada em troca, só um pequeno favor: tome conta desta plantinha! Nunca a abandone! Meu tempo está chegando, hoje mesmo embarco para um outro plano, prometi cuidar dela, uma espécie de trato, de pacto e conquistei o mundo enquanto jovem, nunca mais vou voltar, lá assumirei outra forma e se tudo correr bem, vou me tornar um ser iluminado e imortal. Escolhi você para me suceder e a toda a minha fortuna, meus bens, fiz um testamento, deixei tudo para você, esses bens são seus, intransferíveis, até o dia de sua morte. De manhã, um carro branco com motorista estará parado aqui e o levará rumo a sua nova vida de prosperidade. Vamos até a esquina, vou te entregar o presente.
O estranho, foi até a encruzilhada e levou um pequeno vaso com uma estranha plantinha, parecia um cacto de uns vinte centímetros de altura, com uma cor entre laranja e vermelha. Disse:
- Ele se chama Cauá. Cuide dele com carinho e terá dele tudo o que quiser e precisar. Agora preciso seguir o meu caminho. Venha me dar um abraço!
- Não vá, fique. Eu ainda nem sei seu nome!
- Meu nome é José. Hora de ir.
E os dois se deram um longo e fraternal abraço.
A partir dali, o jovem viu a felicidade. Viajou por todos os cantos do planeta, desfrutou de todas as delícias que a vida tinha a oferecer. Freqüentou cassinos, ganhou nos jogos e quadruplicou sua fortuna. Seus olhos viram e admiraram todas as maravilhas do mundo. Aprendia e dominava os idiomas dos lugares por onde passava. Em pouco tempo tocava e sabia de cor vários concertos para violino. Conquistou e possuiu as mulheres mais lindas. Sempre levando a plantinha aonde ia.
Aos trinta anos, após todo o deslumbramento, morando em Nova York, o tédio tomou conta do seu ser e caiu em si. Lembrou-se de sua origem e de seu triste passado, que jamais poderia ser apagado. Deu à mãe (a enfermeira) uma linda mansão e uma vultosa quantia para mantê-la. Era uma forma de dar o troco ao tratamento recebido. Fazer com que todos soubessem que prosperou de maneira honesta, mas deixou claro não haver interesse em ver ninguém.
- O que me falta? Nada me falta. Posso fazer tudo o que quiser, até alugar amigos. É melhor do que estar rodeado de espertalhões interesseiros.
Foi aí que olhou verdadeiramente para a plantinha, posta numa espécie de santuário, no meio da biblioteca.
- O poderoso Cauá... Até hoje não vi você se mexer, sair de onde está, se eu não molho morre, há doze anos não cresce. O José me enganou, aquele filho da puta, ele deve ter me hipnotizado. E eu realmente me achei um vencedor, eu acreditei nisso. Posso ter tudo de material, mas poucas vezes encontrei o amor. Se o amor veio foi por pouco tempo, acho que o José foi a única pessoa que me amou de verdade.
Logo depois escutou gemidos graves de homem, como os de alguém ferido, sentindo dor. Pouco a pouco seus galhos foram se movendo. Sentiu medo, quis sair correndo, mas enfrentou. Ficou observando aquele ser se metamorfosear e ficar luminoso. Virar um pequenino ser antropomórfico, com uma pele idêntica a de uma salamandra.
- Ingrato! Você não tinha nada. Era burro, feio, fedorento, todos tinham nojo de você, riam de você, enganavam. Um merda! Fui eu quem te proporcionou todas as dádivas que você tem na vida.
- Cauá, você não me deu o principal: eu quero o amor. O amor de uma mulher que me ame verdadeiramente.
- Você não teve o amor do José? Fui eu quem o dei a você.
- É, e me tirou rápido também.
- José era seu pai, meu amigo, fui eu quem o avisei que era seu pai, ele nem sabia.
- Então por que ele não me contou?
- Senão um dia ia ter que contar como foi, e certamente você não iria gostar. O que importa é que ele era seu pai e te amava. Estou vendo que tudo o que dei a você não tem importância nenhuma, você continua sendo o mesmo pobre de espírito igualzinho a sua mãe. Egoísta, rancoroso. É por isso que ninguém te ama, seu covarde, encrenqueiro. Não consigo plantar amor no seu coração...
- Vou te dar um mês, Cauá. Hoje é dia 02, se no dia 02 do mês seguinte não me arranjar uma mulher que me ame de verdade, te jogo fora, te destruo.
E saiu para a farra. Alugou uma boate. Colocando todos os que estavam na fila de entrada, para dentro, sem pagar e contratou as mais belas garotas de programa de uma agência. Aquela noite foi regada a sexo, drogas e house-eletro.
O mês passou rapidamente.
- Acorda, Cauá! Cadê a mulher que você me prometeu?
- Eu não prometi nada a você!
- Você é meu escravo, tem que fazer o que eu mando!
- Não sou seu escravo, você nunca me deu nada!
- Dei sim, sempre cuidei de você. Nunca entendi por que eu tratava de uma planta tão feia quanto você!
- E você que era um lixo e eu o transformei num príncipe?! Só não pude mudar sua alma. Sua alma é um lixo, sempre foi. Tive pena de você. Pensei que você tivesse recuperação. Eu me enganei. Até que para quem foi concebido atrás de um poste por uma mixaria, para comprar cocaína, consegui dar uma tapeada. Eu poderia, neste mês, te arrumar uma espertalhona para roubar tudo que você tem. Nem isso eu fiz. Eu sou um outro ser, mas eu tenho coração, você não. Você é um ingrato!
- Vou fazer o que prometi, Cauá!
Foi no depósito pegar uma tesoura de cortar plantas. E destruiu, cortou Cauá em vários pedaços, que não reagiu de tão magoado e desapontado que estava. Dizendo:
- Você me chamou de lixo, você é o lixo e é para o lixo que você vai!
O colocou num saco e o levou para fora de casa para o caminhão levar.
Acordou chorando, de madrugada, com muita dor, no meio do lixão. E prometeu a si mesmo se vingar. Sabia que se fizesse isso, jamais iria poder voltar a ser o ser que era, e não tinha mais forças. Reuniu as últimas para se transformar na mulher mais formosa que o mundo já viu.
No dia seguinte deu um jeito de encontrá-lo no clube em que freqüentava. Todos estavam encantados por ela, mas seu alvo estava a dez metros de distância. Seus olhos se encontraram e ele sentiu uma enorme atração por ela, que não durou um minuto para se transformar em amor. No mês seguinte estavam casados. Tiveram uma grande lua-de-mel num cruzeiro. Após um ano, veio a alegria de um casal de gêmeos . A casa estava tomada por um sentimento de paz. Difícil era escolher os nomes dos bebês.
- Que nomes nós iremos dar a eles, querida?
- Já teve alguém que significou muito para você?
- Sim.
- Dois nomes?
- Sim.
- Quer dá-los aos bebês?
- Sim.
- Quais são?
- José e Cauá.
LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 17/08/2009