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O PEN-MATE


        

O PEN-MATE




Sabe o que é um pen mate? É uma expressão inglesa que significa correspondente ou, ao pé da letra, amigo de caneta, pois é, troco cartas com essa pessoa, que vive na Inglaterra, desde 1970, quando contava apenas seis anos , porque estava sendo alfabetizado em dois idiomas, inglês e português, portanto sou bilingüe. Parece surreal, mas o outro é filho de um amigo de papai, que tem a mesma idade que eu. Temos ótimas recordações, trocamos fotografias diversas sobre fatos importantes de nossas vidas, desde o Kindergarden, até o High School, fiz o curso médio lá, mas em outro colégio, em um colégio diferente do dele, ele estudava na capital, e eu no interior. Neste período mandávamos fotos das namoradas, e de lugares fantásticos de nossas  viagens quando em férias, devo ter arquivadas para lá de duas mil e quinhentas imagens, que agora estou escaneando e passando para o computador, até para preservar o material amarelado pelo tempo, logicamente guardarei as originais. Quando John fez nove anos, passou a me relatar seus sonhos, para ele muito reais. Via, enxergava pelos olhos de outra pessoa, mas não sabia seu nome, nem quem era. Andava por lugares exóticos em épocas diferentes, achava até que era mais de uma pessoa. Seu pai, por conta disso,  o mandou para tratamento psiquiátrico e John, já que não conseguia evitar seus sonhos, foi obrigado a mentir após dois anos de tortura, que essa fase havia passado, e recebeu alta médica e da sociedade, só eu, como amigo, fiquei sabendo dos fatos reais, e  continuou periodicamente a mandar seus relatos, tanto o que acontecia interiormente e exteriormente, até que um dia parou de me escrever. Desapareceu sem me dar satisfação. Tentei achá-lo na Internet, mas foi em vão. Fiquei muito preocupado, depois pensei no ditado: “Notícia ruim chega rápido!” . Talvez o sumiço tenha feito um bem enorme a ele!

           Hoje conto trinta e oito anos de idade, e sou um merda na vida, meus credores todos os dias batem em minha porta, nem o fato de ser bilíngüe, ou ser um expert em webdesign me fez mais rico. Vivo de bicos, sou um solteirão frouxo, fraco, mulherengo. Um dia desses, fui conhecer uma moça no sul do Brasil, que travei contato pela internet, linda ela, mas não quis nada comigo. Olha, para mim essa aventura além de ter me deixado mais duro ainda, porque pedi um empréstimo alto para viajar confortavelmente, foi altamente frustrante, aí chorei. Chorei tanto um dia, que falei comigo mesmo “eu não vou mais querer acessar essa porcaria de bate-papo na Internet, prefiro as velhas cartas, que são muito mais pessoais.” Foi aí que, sem querer olhei para o baú onde guardo o meu tesouro particular: as cartas do meu amigo, e peguei uma aleatoriamente. Datava dezembro de 1982: “This night I had a terrible dream...”  Vou traduzi-la para você: “ Esta noite tive um sonho terrível,comigo outra vez, era como sempre um eu diferente, eu me sentia mais adulto, ou estava numa boate que tinha um chão xadrez preto e branco, e eu me sentia frustrado, fui ao banheiro chorar escondido, e logo depois vi a razão do meu descontentamento, uma linda loura de olhos claros, um metro e setenta e cinco e corpo escultural, ela disse que eu era um imbecil e que a melhor coisa que eu faria era fazer minhas malas de volta para casa. Ela estava acompanhada de um rapaz muito bem vestido, na minha opinião tão vazio quanto ela, mas ela me pisou, fiquei totalmente arrasado...” Comparei com a minha história e vi que tudo se encaixava perfeitamente. Desesperadamente, comecei a vasculhar todo o baú, só aí percebi que o eu dele nos sonhos era eu depois dos trinta anos, tinha tudo, até quando fui visitar a Austrália, e fui conhecer os aborígenes. Será que o John não guarda nada consigo? Nem se lembra dos sonhos?  Bem capaz de não, porque o pai dele certamente volta e meia mexia em suas coisas para ver se estava tudo normal, talvez, por auto proteção tenha preferido se prevenir. Não deve se lembrar também, eram tantos.

          Olha esse aqui!!!!!!!!! O  resultado de um jogo, uma seqüência inteira de números! Diz aqui que um cidadão apostou porque o melhor amigo, em um país distante, previu há quinze anos, através de um sonho, que no dia  vinte e quatro de março de dois mil e três  um homem ganharia sozinho o prêmio mais alto acumulado há várias semanas, que o ajudaria a reformular tudo em sua vida. O dia é amanhã! Ainda dá tempo de jogar, não quero sofrer mais, vou até a lotérica fazer o jogo. Vou ganhar!

          No trajeto, andando pelas ruas, vi-me, de repente,  trajado como mendigo, reparei que estava barbudo, meus cabelos  compridos e sujo. O que aconteceu comigo?

-         Que dia é hoje, amigo?

-         Sábado!

-         Que horas são?

-         11h 50 min. Vai querer saber a data, maluco? 27 de dezembro. Ano? 2008. Por quê? Está atrasado para um encontro de negócios? Hahahahah!



O indivíduo seguiu andando e outros passantes o criticavam:

-         Onde já se viu ironizar o pobre mendigo?

-         Pelo menos ele deu atenção e a informação que queria, tem gente que passa por alguém assim e nem o reconhece como ser humano, nem como animal, nem o vê, a não ser que se torne uma ameaça.

-         Quando eu saí de casa era 2003... Agora estou aqui! Será que eu fiquei rico e me roubaram?

-         Eu, hein, moço, o senhor não fala coisa com coisa...

-         Eu posso explicar, acho que posso...

-         Vamos embora, esse cara é maluco... hahahaha! O outro até que foi cortês.

-         Não, gente, eu saí de casa para fazer um jogo na lotérica em 2003... Não vão!

E os passantes se dissiparam...

          Bem, ainda faltam cinco minutos para a lotérica fechar. Ué, cadê a lotérica? Tenho certeza de que era aqui! Olho para  frente e vejo uma do outro lado da rua, saio correndo no meio dos carros, quase me atropelam, mas cheguei. Cheguei! Moço me dá o resultado da lotérica de 24 de março de 2003? O atendente debochando:

-         O senhor pode puxar pela Internet! E por que iria querer o resultado?

-         Porque eu acho que joguei e ganhei!

-         Hahahaha! Ganhou e perdeu tudo ou está disfarçado?

-         Moço, tem gente na fila! – Falou um cliente!

-         É, tem gente na fila! Dá logo esse resultado para o coitado do homem! O senhor não tem coração?

-         Ok.

Puxou o resultado.

-         Ganhei, eu ganhei! Por via das dúvidas quero fazer outro igual hoje, agora!

-         O senhor tem dinheiro para pagar?

-         Ih, meu amigo, espera aí, meus bolsos estão furados...

-         Aqui, rapaz, toma esse aqui. – Estendeu a mão a velhinha do fim da fila. – Ainda estou com espírito natalino!

Saí todo feliz com meu bilhete na mão. Ainda pude ouvir todos numa sonora gargalhada. Isso não me importou muito. Queria saber se joguei, ganhei e se fui buscar meu prêmio há cinco anos. E, onde está a minha casa? E, será que me roubaram, deram uma pancada na minha cabeça e eu fiquei desmemoriado? Em quem confiar? A quem procurar para contar a minha história? Sei meu nome, sei onde morava, mas onde estão as minhas coisas para eu provar que eu sou eu? Algum lugar tem que ter a minha foto. Na faculdade, no Detran.

Fui à faculdade, na segunda-feira, procurar minha pasta arquivada. Eles relutaram em me fornecer os dados, também pudera, com este aspecto degradante, não os recrimino. Uns debocharam de mim, mas perceberam, pela minha retórica que eu era um cara bem letrado. Acharam minha ficha e minha documentação. Deram-me uma cópia dentro de um envelope. E eu saí de lá contente, já era um passo para o resgate da minha identidade. Escutei os funcionários cochichando quando eu saía. Abri o envelope e vi minha fotografia, fui até o banheiro procurar um espelho para ver se eu havia mudado muito. Levei um susto: o homem do espelho não era o homem da fotografia. Era o meu pen-mate!

Saí de lá transtornado, tudo estava girando, eu quase desmaiando, suando frio, foco os olhos em uma casa lotérica...

- Eu ganhei! Ganhei novamente! Desta vez não vou deixar ninguém roubar meu mundo... Bem, hoje não dá mais tempo, amanhã vou trocar o bilhete no banco. É bom, não vou mais dormir na rua. Nem hoje, olha só, pela ficha eu sei que meu pen-mate mora ou morou nesta rua. Vou até lá agora. Chego no prédio, a porta de entrada está aberta, então subo de escada até o segundo andar, a porta do apartamento está encostada e eu entro sem cerimônia. Estou contente por ver meu amigo sentado na penumbra em frente ao computador, ele se volta para mim e sorri, AAAAIIII, o computador está me puxando para dentro dele, socorro, socorro, que dor... Amigo, me ajuda, me ajuda, por favor, não fica aí parado... Filho-da-puta! Filho-da-puta! Filho-da-puta!  F...



        
LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 23/07/2009
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