NA BERLINDA ( obs: TEXTO TEM 4 PÁGINAS)
EXTRAÍDO DO MEU LIVRO "GAUCHE, A ESTRANHEZA".
NA BERLINDA ( ghost writer)
Autor dos dois livros brasileiros mais vendidos no exterior, Retlav Sotnas, está sendo, neste momento, alvo da opinião pública mundial. No espaço de dois meses, tentou dar cabo da própria vida por sete vezes, motivo pelo qual a família e os amigos mais chegados resolveram interná-lo em uma clínica particular, no interior do Estado, para tratamento de stress e para sua segurança pessoal. Retlav afirmou ao confidente que precisava fugir de si mesmo e também acertar contas com um dos gênios consagrados da literatura universal, o escritor Mednam Ragsar. Acontece que este já havia falecido há mais de duzentos e cinqüenta anos, aí é que estava a estranheza; muito nervoso ainda, prometeu que quando melhorasse, se melhorasse, iria contar, com detalhes, toda a história.
Dois meses após a internação, a Clínica, a pedido do mais ilustre cliente, abriu as portas para uma entrevista coletiva. Aparentemente estava bem, e muito coerente.
Senhoras e senhores, convoquei a imprensa para dar uma satisfação a sociedade sobre o meu surto.(silêncio. Suspense)
Beimmmm...como é de conhecimento geral, sempre fui considerado ( e era mesmo) um escritor medíocre, levava uma vida medíocre no trabalho, em casa, com a família, enfim, meus livros anteriores aos dois best-sellers eram simplesmente horríveis ( reconheço tal fato, tinha todas as limitações possíveis: idéias boas que não conseguia passar para o papel, e quando sim, saíam uma bela porcaria. Empenhava todos os recursos, pagando as gráficas para imprimir obras que não tinham a mínima expressão. Minha mulher, mãe dos meus filhos, sempre acreditou no meu trabalho como escritor, e sustentava a casa para que eu pudesse apostar e investir nos meus sonhos. Chegou uma época que tive vergonha de mim mesmo e desta situação, mas infelizmente, o exercício da escrita vira um vício, como qualquer outro e foi o que mais pesou. Larguei a família, porque não me sentia feliz. Larguei o trabalho, e com minhas poucas reservas econômicas, aluguei um quarto independente nos fundos de um casarão. Levei poucas coisas, levei também a velha máquina de escrever, deixei o computador para trás, e resolvi que iria começar escrever minhas obras-primas. Talvez a solidão fosse o principal ingrediente das grandes inspirações ...nada...absolutamente nada. Um vazio da alma, tudo branco, meu dinheiro acabando, minhas folhas também. O que eu faria? Mendigar? Voltar para a casa de minha ex-mulher? A fome. A fome transforma o indivíduo, o faz tomar atitudes que surpreendem a si próprio. A fome, muitas vezes, estimula a criação. Cheguei a rasgar, amassar e comer cerca de três resmas de papel eno espaço de um mês. Não arrumava mais a cama, não fazia mais a barba, não tomava mais banho. Pensei, no alto do meu desespero, " eu vendia minha alma para ter um dia um tiquinho, um décimo da inspiração de Mednam Ragsar ." Eis que, eu não o vi, mas seu espírito naquele momento invadiu meu cérebro. E, numa noite, me ditou um livro de quatrocentas páginas, que eu escrevi na frente e no verso dos últimos rolos de papel higiênico. Percebi que os papéis mais baratos são muito bons para se escrever com esferográficas. Dormi naquele noite como há muito não dormia. Acordei de manhã e não...não poderia Ter sido sonho, saí procurando os escritos pelo quarto. Estavam no banheiro. Não foi sonho, para minha extrema felicidade. Agradeci aos deuses. Tomei um banho, escovei os dentes, mudei de roupa e fui caminhar esbaldando e irradiando minha alegria. À tarde, reli parte do livro e percebi que havia nexo em seu contexto. Fui à rua de novo e, ligando de um telefone público para minha ex-mulher, pedi insumos para comprar algumas resmas de papel e, lógicamente, não podia contar, comprar frutas também, o que prontamente me atendeu. Aleguei que em uma das contas, a principal onde mantinha meus proventos, havia um problema com a tarja magnética do cartão, e que era melhor fazer o depósito em uma outra conta. Foi feito imediatamente pelo computador. Ela só perguntou, como fã, como estava indo meu novo livro. Eu respondi que não podia estar melhor, pois o terminei algo que iria causar comoção no dia anterior. Acho que ela sentiu o meu ânimo. Prometi que seria a primeira a lê-lo. Comprei as resmas e disse a mim mesmo "vou publicar o livro, com certeza vou ser reconhecido e ficar rico, duvido que tenha sido o fantasma de Mednam Ragsar, deve ter sido um delírio de fome". No mesmo dia a mesma coisa aconteceu, ele apareceu de novo e me ditou outro livro de trezentas páginas. Eu estava mais lúcido, senti muito medo desta vez, porque percebi que o espírito estava diferante. Era um espírito que não se via, e eu mesmo achava que estava ficando louco, mas continuava escrevendo. Às três da manhã terminamos. Ao final ele disse: "Você deve publicar estas obras, mas revelar à humanidade o verdadeiro autor. Eu também passei fome, só fui reconhecido depois de desencarnado. Prometo que vou lhe ajudar daqui para frente, não o deixarei mais sofrer humilhações de nenhuma espécie nesta vida, mas publique estas obras, meus melhores escritos, eu os vi sendo usados para embrulhar produtos na feira depois que eu morri, isso me deixou, por séculos, irado, minha alma vagou na lama das traições; no entanto eu escrevo para a tão famigerada humanidade, que sempre me tratou como lixo. Notei o seu desespero, você é minha única esperança. Nunca me traia. Não me traia jamais, se o fizer, eu o enfernizarei por toda a sua longeva vida. Você viverá cento e sete anos. E nunca mais se livrará de mim." Desapareceu.
Publiquei os livros, mas, ao ouvir dos editores que eram as melhores obras passadas pelas mãos deles, eu me envaideci, esqueci de todas as promessas que fiz a Mednam, me vi rico, famoso, com todas as pessoas querendo me tocar, estar perto de mim, me considerando em alto grau, sendo assediado pela imprensa; e foi o que realmente aconteceu. Até minha mulher e meus filhos voltaram para mim. Mudei-me para a mansão. Eu tinha status, tudo o que um homem pode querer...Um dia, depois de três anos, estava eu pensativo e melancólico, nesses encontros raros que temos com nós mesmos, lembrei-me da minha traição e de quem mais me apoiou. Mednam apareceu para mim, materializou-se. Quis sair correndo, mas senti uma ternura tão grande no ar que fiquei. Achei que ele fosse me perdoar, mas não, disse que ia cumprir o que prometeu. Já não dormia mais, não tolerava mais os fãs nem a imprensa, nem os amigos, nem a família. Perdi os dois últimos, que eram os mais próximos. Os empregados da casa não quiseram mais ficar. Vi-me isolado com um espectro que ninguém via além de mim. Estava tão perturbado, por isso tentei o suicídio. Depois desta internação resolvi contar para o mundo o que se passou, e quem sabe, livrar-me deste karma?
Como explica o fato, de que peritos não encontraram semelhança alguma entre os estilos do senhor e Mednam Ragsar ?
É? Isso é verdade?....
LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 19/07/2009
Alterado em 22/02/2016
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